Sunday, September 30, 2007

Pequena meditação sobre o Miserere

O Salmo 50/51, mais conhecido por Miserere, marcou profundamente muitos homens das mais variadas épocas. Algumas, das pessoas que se deixaram tocar pelas palavras desta poesia, ousaram expressar musicalmente o sentimento do salmista. Sentimento inculcado no coração de todos nós, que passamos pelo drama de existir durante esta peregrinação aqui na terra.

Creio que quem ler este salmo, saboreando cada versículo, cada palavra, sairá da sua finitude para sentir um pouco da eternidade que há em Deus.

A versão musical mais conhecida do texto bíblico é a de Gregório Allegri, escrita no século XVII. Esta obra será ouvida e apreciada para sempre, pelo menos enquanto existirem loucos que desejam a pureza de coração. Aquela pureza que permite ver Deus. Só esses podem compreender a súplica: «Criai em mim, oh Deus, um coração puro!».

Este é o coração da eternidade. Todo o Miserere de Allegri parece não seguir um caminho, um rumo. Não chega a uma meta, nem está no tempo que passa. Apenas permanece como um todo, indiciando o que é a eternidade, mostrando-nos o que significa estar in saecula seculorum.

Os intervalos utilizados são sempre muito puros, quintas e quartas que se destacam num contraponto simples e numa harmonia perfeitamente consoante. Tudo isto está delineado para que o ouvinte possa sentir a pureza, a pureza que há no Homem. Oh melhor: a pureza que o Homem deseja ter.

O salmista tem este desejo, não a partir de uma reflexão filosófica, mas a partir da sua própria vida. É olhando para ela que se reconhece como pecador. Percebe que desperdiçou muito do tempo que lhe foi dado. Sente que o seu passado não tem sentido, porque o único sentido que existe é Deus, o Amor que ele não amou.

Contudo, é a sinceridade com que descreve esse sentimento, a genuinidade com que deseja ser purificado por Deus, que o leva para a pureza do seu coração. É no mais fundo de si que ele encontra Deus, o sentido e a paz que a música transmite.

Sentindo-se pecador, começa a sentir-se perdoado e amado. Sente-se amado e não sabe como responder a esse amor. Só deseja amá-Lo da mesma maneira. E é amando-O que descobre a força do amor recebido: «Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito humilhado e contrito».

Recentemente tive a oportunidade de ouvir uma versão deste salmo mais recente: o Miserere de Arvo Part, composto em 1989, na óptima gravação da ECM.

Tal como a obra de Allegri, aqui continuamos a saborear estes momentos de eternidade que alimentam a nossa fé. Momentos onde não se encontra a presença do tempo, do tempo que passa, pois tudo permanece numa dinâmica misteriosamente estática e unificadora.

Contudo, em termos musicais, o drama da existência humana torna-se mais explícito. Não seria esta a obra de um convertido…

Logo o início está cheio de mistério, de busca desesperada, no meio de pianíssimos, onde quase não dá para distinguir os instrumentos das vozes. Os sopros, confundindo-se com as vozes humanas, retiram-se e aparecem subtilmente.

Tudo isto nos mostra o despertar do Homem para a Existência. O Homem que fica profundamente admirado por existir. E, depois, começa a procurar onde realmente existe.

Depois de não se sentir saciado com a sua própria existência, começa a relacionar-se com outras existências, cuja finitude também não o saciam.

Nasce, então, o desejo ardente de encontrar a fonte das existências: quer conhecer o Existente. Só assim poderá libertar-se do vazio da sua vida sem sentido. Da vida que o afastou dessa existência eterna, cheia e plena. Descobre que só esta poderá encher o seu coração.

Sente-se pequeno, frágil, incapaz de viver plenamente, incapaz de repor o sentido já perdido. Mas é precisamente do reconhecimento dessa pequenez, dessa humildade, que nasce a flor da pureza. Quando se reconhece incapaz, deixa de estar fechado no seu mundozinho e abre-se à Misericórdia abundante que a eternidade tem para lhe oferecer. Deixa-se invadir por ela, não para ser perdoado mas para perdoar, não para ser amado mas para amar. Amar toda a humanidade que há em si. Este é o homem que diz:

«Misericórdia, meu Deus, por tua bondade,
por tua imensa compaixão apaga minha culpa;
lava todo o meu delito,
limpa o meu pecado.

Pois eu reconheço minha culpa,
tenho sempre presente o meu pecado:
contra ti, contra ti somente pequei,
cometi a maldade que te entristece.

Gostas de um coração sincero,
e em meu interior me ensinas a sabedoria.
Purifica-me com o hissope e ficarei limpo;
lava-me e ficarei mais branco que a neve.

Faz-me ouvir o júbilo e a alegria,
que se alegrem os ossos quebrantados.
Afasta de meu pecado a tua vista,
apaga em mim toda culpa.

Oh Deus, cria em mim um coração puro,
renova-me por dentro com espírito firme;
não me afastes para longe da tua face,
não me tires o teu santo espírito.

Devolve-me a alegria da tua salvação,
sustém-me com espírito generoso:
ensinarei aos transgressores os teus caminhos,
e os pecadores voltarão a ti.

Livra-me do sangue, oh Deus,
Deus, Salvador meu,
e minha língua cantará tua justiça.
Senhor, abre meus lábios,
e minha boca proclame o teu louvor.

Os sacrifícios não te satisfazem
e, se ofereço holocaustos, não os aceitas.
Sacrifício agradável a Deus
é um espírito humilhado e contrito;
um coração quebrantado,
Deus não desprezará»

Friday, September 28, 2007

Thomas Merton on Art

"There is only one reason why this is completely true: art is not an end in itself. It introduces the soul into a higher spiritual order, which it expresses and in some sense explains. Music and art and poetry attune the soul to God because they induce a kind of contact with the Creator and Ruler of the Universe. The genius of the artist finds its way by the affinity of creative sympathy, or conaturality, into the living law that rules the universe. This law is nothing but the secret gravitation that draws all things to God as to their center. Since all true art lays bare the action of this same law in the depths of our own nature, it makes us alive to the tremendous mystery of being, in which we ourselves, together with all other living and existing things, come forth from the depths of God and return again to Him. An art that does not produce something of this is not worthy its name."
retirado de No Man is an Island

Wednesday, September 26, 2007

Para quem anda mais distraído


é bom lembrar que a ACCENT, pela comemoração do seu 25º aniversário, relançou no mercado a preços muito acessíveis algumas gravações que já se haviam tornado verdadeiras raridades. Entre estas encontram-se as sonatas para flauta de Handel, numa interpretação de referência de Barthold Kuijken.

Se cá estivesse, Glenn Gould teria apagado ontem mais umas velas

Tuesday, September 25, 2007

Música e Dez Mandamentos (post III)

Não levantarás falsos testemunhos

ou

Não colocarás Chopin entre os grandes mestres.

Tuesday, September 18, 2007

Gostar de música clássica.

Tire um dia para si. Acorde e tome o pequeno-almoço sem rádio, sem televisão. Concentre-se no que faz. Oiça os seus passos, o ruído dos talheres, o cair do leite no copo. Saia para um parque, leia um livro. Oiça os miúdos que correm, os pássaros que cantam. Estude. Fale o menos que puder. Não telefone. Desligue o telemóvel. Não leia jornais. Passe assim o dia.
Ao jantar saboreie o que come, saboreie o que bebe. Não fale. Saboreie o silêncio. Ligue então a sua aparelhagem e escolha um CD. Uma qualquer suite para violoncelo de Bach será uma boa escolha. Sinta a paz que o habita. Preste atenção à primeira nota, aguarde-a ansiosamente. Deixe-a invadir o espaço, como o sol que inicia a manhã. Oiça a ressonância da caixa de madeira, imagine o arco que toca as cordas, oiça a respiração do instrumentista. Eis o que mais próximo do paraíso podemos ter nesta terra.

Thursday, September 06, 2007

Bruckner, Mahler e o Espírito Criador

Bruckner e Mahler confundem-se em duração e densidade orquestral, mas uma vez considerados estes dois, não sobram muitos outros pontos de contacto entre as suas músicas. Enquanto Mahler é turbulência emocional, Bruckner é retiro e contemplação. Mahler é um homem perdido no mundo, é alguém que trava uma luta incessante consigo mesmo; vive intensamente a dualidade mas é incapaz de resolver o conflito entre matéria e espírito, por isso a sua música é tão apaixonada, carregada de sofrimento, de breves alegrias e contrastantes momentos de sublime redenção. Já a música de Bruckner é contemplação vivida num mosteiro, mortificação e entrega da vontade, trata-se afinal do encontro de um monge com o espírito criador, que Mahler curiosamente invoca na sua oitava sinfonia (amostra no fonógrafo digital).